Há 10 anos, no Dia Internacional dos Direitos Humanos, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi apresentado na sede da OAB. O documento foi entregue à sociedade civil, aos representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e aos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Criada pela Lei 12.528/2011 no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, mas instituída em 16 de maio de 2012, a CNV teve por finalidade apurar violações de direitos humanos ocorridas entre setembro de 1946 e outubro de 1988.
Em celebração à data considerada histórica, o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, reafirma o compromisso da entidade com a preservação da memória e em defesa da democracia e pela busca da justiça. “A memória é o alicerce de uma democracia sólida. O relatório da Comissão Nacional da Verdade, que completa uma década de sua apresentação, é um marco imprescindível para que o Brasil reconheça os erros do passado e construa um futuro baseado na Justiça e no respeito aos direitos humanos”, declara.
“A luta pela democracia e a defesa dos direitos fundamentais são parte da história da OAB. A Comissão da Verdade fez um importantíssimo trabalho de resgate histórico, fundamental para a memória da nação e para a consolidação do período democrático. É preciso lembrar para jamais repetir os erros do passado. Assim, podemos construir um Brasil pacificado, com uma sociedade justa, solidária e fraterna, que respeita as diferenças”, afirma o membro honorário vitalício Marcus Vinicius Furtado Coêlho, presidente da OAB na época de apresentação do documento.
Com 4,4 mil páginas divididas em três volumes, o relatório reúne 29 recomendações, incluindo a responsabilização de agentes do Estado por graves violações de direitos humanos e a revisão da legislação – Lei da Anistia (Lei 6.683/1979).
Referência histórica
Relator e coordenador da CNV, o professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Pedro Dallari fala da influência da OAB na memória democrática do país. “A Comissão Nacional da Verdade deliberou por fazer a entrega simbólica do documento à sociedade e, para isso, dirigiu-se à sede do CFOAB, expressão maior da cidadania brasileira, naquele 10 de dezembro, dia em que, no mundo todo, se celebra os direitos humanos. O evento na casa da advocacia foi muito expressivo: o presidente do Conselho Federal recebeu o relatório e lideranças sociais se sucederam na tribuna, ressaltando o elevado significado daquele momento para a história do país.”
Dallari destaca que o relatório permanece como referência para o registro das graves violações de direitos humanos que ocorreram no Brasil na segunda metade do século passado, especialmente no período da ditadura militar que se prolongou de 1964 a 1985.
“Utilizado para subsidiar demandas judiciais, matérias jornalísticas, trabalhos acadêmicos, o trabalho da CNV materializado no relatório se encontra referido, mais recentemente, no final do festejado e impactante filme ‘Ainda estou aqui’, que retrata a vida da família de Rubens Paiva após o assassinato do ex-deputado por agentes da ditadura, acontecimento que recebeu profunda investigação por parte da Comissão”, ressalta o coordenador do relatório, complementando que “fazer um trabalho de referência foi o que nos motivou”.
Paulo Sérgio Pinheiro, também integrante da CNV, aponta que o relatório se torna mais relevante a cada ano. “Um dos desvendamentos mais relevantes foi a Comissão Nacional da Verdade ter revelado a cadeia de comando das torturas, sequestros, assassinatos dos que se opunham ao autoritarismo. Esses crimes não foram a expressão de abusos e excessos, mas, na verdade, tinham sido alvo de operações específicas comandadas pelos generais-presidentes numa articulação que ia de seus gabinetes até os que cometiam aqueles crimes”, diz.
Segundo Pinheiro, é essencial a criação de um mecanismo de acompanhamento das recomendações do relatório.
Além de Dallari e Pinheiro, integraram a Comissão Nacional da Verdade responsável pelo relatório: Rosa Maria Cardoso da Cunha, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho e Maria Rita Kehl.
Cenário atual
Durante esses dez anos, a revisão da Lei da Anistia é um dos pontos mais discutidos desde a apresentação do relatório. A OAB mantém uma postura clara em favor da revisão da interpretação da Lei da Anistia para excluir os crimes de lesa-humanidade do escopo da anistia concedida em 1979. Desde 2008, a entidade atua como uma das principais instâncias demandantes nessa questão, ao propor a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 no Supremo Tribunal Federal (STF). Esse processo questiona a constitucionalidade da legislação à luz da Constituição Federal e do Direito Internacional, especialmente quanto à imprescritibilidade de crimes como tortura e desaparecimento forçado?.
Apesar da decisão desfavorável do STF em 2010, que reafirmou a anistia para os crimes cometidos por agentes do Estado, a entidade permanece engajada, conforme destaca o presidente. “A OAB tem reafirmado a necessidade urgente de revisar a interpretação da Lei da Anistia para que o Brasil cumpra suas obrigações internacionais, como determinado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund [Guerrilha do Araguaia]. A impunidade para crimes de lesa-humanidade, perpetuada pela atual interpretação da legislação, é incompatível com os princípios do Estado Democrático de Direito e os compromissos assumidos pelo país. Não podemos consolidar nossa democracia sem Justiça e sem o devido reconhecimento das violações cometidas no período da ditadura”, afirma Beto Simonetti.
Ao complementar, ele esclarece que a Ordem também atua na conscientização sobre a importância de preservar a memória, conforme apontado no relatório da Comissão Nacional da Verdade, para prevenir novas violações?.