Em um momento em que a questão do bem-estar animal ganha crescente atenção, a entrevista com a advogada Thuane Correa Goltara, coordenadora da Comissão de Proteção e Bem-Estar Animal, da 2ª Subseção da OAB-ES, oferece insights valiosos sobre o tema. Com um foco aguçado nas implicações legais e éticas da guarda responsável, a discussão aborda uma área frequentemente marcada por desafios e controvérsias. Thuane, com sua expertise jurídica, desvenda as camadas que compõem a complexa relação entre humanos e animais na sociedade contemporânea.
Ao mergulhar no cerne do problema do abandono de animais, a advogada não apenas destaca as responsabilidades legais dos guardiões destes, mas também lança luz sobre as consequências do abandono para a saúde pública e o meio ambiente urbano. A entrevista concedida ao portal OAB Cachoeiro de Itapemirim revela como a negligência e o descuido podem levar a situações de risco tanto para os animais quanto para a comunidade em geral, destacando a importância da castração e da adoção consciente.
Considerando o tema do abandono de animais e suas implicações para a saúde pública, por que a guarda responsável e a castração são tão importantes para o bem-estar animal?
Esclareço inicialmente que a guarda responsável é uma obrigação legal, uma vez que o guardião/tutor que não cuidar do animal pode responder por crime de maus-tratos, que, vale ressaltar, não é mais considerado crime de menor potencial ofensivo. O Brasil possui uma população imensa de animais em situação de abandono, e eu digo de abandono e não de rua, pois não existe animal de rua. A maior parte dos animais que já nasce nas ruas morre nos primeiros meses, então os que se encontram lá foram abandonados já maiores por suas “famílias”, ou foram, em algum momento, retirados da rua e depois abandonados novamente. Além disso, é indiscutível que a população de animais errantes é problema de saúde pública, dada a possibilidade desses animais proliferarem zoonoses e também à dificuldade de se manter um ambiente limpo à medida que os lixos são a única fonte de alimento desses pobres animais que, buscando sua sobrevivência, acabam por espalhar “sujeira” pela cidade, aumentando a população também de outros animais indesejados como ratos, baratas, etc. Partindo então do pressuposto que os animais que estão na rua, lá se encontram por terem sido abandonados e que lá estando se reproduzem, chegamos à conclusão que a guarda responsável e a castração são os dois pilares para a redução e, a longo prazo, extinção da população de animais de rua. É um raciocínio muito simples. A guarda exercida de forma responsável impede o abandono de “novos” animais na rua e a castração impede que aqueles que já estão em situação de rua se reproduzam. A longo prazo, não mais existirá animais em situação de rua, como já ocorre na Holanda, por exemplo, que há anos implantou a política de castração e vacinação desses animais e hoje não possui mais animais errantes pelas ruas do país.
Cuidar de um cachorro ou gato é um compromisso para toda a vida do animal?
Obviamente! Os animais domésticos são totalmente dependentes de cuidados, e são seres sencientes, se apegam à família e sofrem muito com a separação. Cachorros vivem, em média, 10 anos… vamos combinar que não é muito tempo. Se alguém que se propõe a comprar/adotar um animal não puder se responsabilizar por ele por este tempo, nem deve fazê-lo. Animais de estimação demandam tempo, carinho, atenção e dinheiro. Não são objetos dos quais se descartam quando não servem mais. Quem faz isso está cometendo crime.
Feitas tais considerações o que seria a nominada “guarda responsável”?
Guarda responsável é o ato de cuidar do animal em todas as suas demandas, mantendo-o seguro e saudável, promovendo todos os cuidados para que o mesmo não sofra com moléstias, naturais ou não, dentro das possibilidades, e, principalmente, sem jamais abandoná-lo. É entender que se trata de uma vida e que ela tem que ser cuidada e respeitada até seu fim. Promover os cuidados de saúde, com regular vacinação e vermifugação, e bem estar do animal, mantendo-o em ambiente digno e seguro. Não é nada além do mínimo quando se trata de uma vida que está sob seus cuidados.
Existe responsabilização legal pela inobservância da guarda responsável de animais?
Sim, e é importante lembrar e deixar claro as implicações do não cumprimento dos deveres inerentes a guarda de um animal. Como dito anteriormente, o animal possui necessidades que seu tutor precisa suprir: alimentação, saúde e bem estar, e isso precisa estar bem claro na mente de quem possui a guarda de um animal. Não se trata apenas de alimentar e dar vacina. A pessoa que tem a guarda do animal e não a exerce de forma responsável, praticando abusos ou expondo o mesmo a risco, responde pelo crime de maus-tratos, tipificado no artigo 32 da Lei nº 9.605/1998, que, com a alteração feita pela Lei nº 14.064/2020, passou a ter pena máxima de 5 anos de reclusão. Ou seja, o crime de maus tratos vai muita além de atos de violência contra o animal, um exemplo bem claro disso é um caso que foi acompanhado pela Comissão, onde recebemos um pedido de ajuda para um cachorro que foi trancado por seu tutor em um terreno murado, sem comida, água ou abrigo do sol. Então, o cachorro não estava apanhando ou sendo mutilado, mas estava sofrendo abuso por ter sido deixado sem comida ou água e em ambiente inapropriado. Os maus tratos foram constatados e obtivemos o auxílio da Polícia Civil. Os policiais adentraram ao terreno para resgatar o animal e lavrar o boletim de ocorrência. Se o tutor estivesse no local no momento teria sido conduzido à delegacia e detido em flagrante.
Como a Comissão de Proteção e Bem-Estar Animal da 2ª Subseção da OAB-ES pode ajudar com o tema?
A Comissão tem finalidade de impulsionar políticas públicas relacionadas ao assunto, orientar a população e fiscalizar o cumprimento das determinações já existentes. Atualmente estamos presentes no Conselho Municipal de Meio Ambiente e estudando a viabilidade de projetos para implantação de política de castração dentro do município. Nos pusemos a disposição para ajudar na regulamentação de organizações não governamentais (ONGs) e protetores que não tem registro, para que possam participar de futuras licitações para implantação dos projetos. Além disso, estamos em alerta sobre a existência de ocorrências de crime de maus tratos e estamos a disposição para acompanhar ocorrências e fazer a intermediação junto a polícia, como já ocorreu. Porém, com relação a este último ponto, é importante ressaltar que, uma vez que nem a polícia nem o município possuem local adequado para recolhimento do animal vítima dos maus-tratos, nem sempre conseguimos fazer a intervenção; essa só é possível quando há local preestabelecido para levar o animal, pois não temos espaço físico. Podemos dizer que a Comissão está aqui para auxiliar a população no que for necessário e possível em termos de orientação e de fazer cumprir a lei, bem como para fomentar políticas públicas e ações relacionadas a causa, seja diretamente com o poder público ou por parcerias com a iniciativa privada.
Aumentou ou diminuiu o número de denúncias sobre animais vítima de maus tratos?
É difícil afirmar, pois nunca analisamos a problemática por uma perspectiva aritmética, mas, sem exatidão matemática, consigo dizer que estas se mantêm ainda altas. As denúncias de maus-tratos, anteriormente eram direcionadas a nós e tínhamos uma dificuldade enorme de solucioná-las. Continuamos recebendo tais denúncias, em número, infelizmente, ainda alto, porém, hoje, o que posso afirmar, é que encontramos maior apoio dos órgãos públicos (Prefeitura Municipal de Cachoeiro de Itapemirim e Polícia Civil), para solucioná-los. A prefeitura, embora tenha uma gerência especifica pra lidar com a situação, disponibiliza como canal de denúncias da sociedade os contatos da Ouvidoria, que são os telefones 156 e (28) 3155-5237, o WhatsApp (28) 98814-3357, ou ainda pelo endereço eletrônico https://fala.cachoeiro.es.gov.br:8443/CadastroChamados.aspx?idTipo=4. Destaco, novamente, a falta de estrutura e profissionais para dar conta da demanda. Ainda é necessário muito avanço por parte da prefeitura para garantir que a legislação existente sobre o assunto seja cumprida. Estamos cobrando e fiscalizando de perto para que isso aconteça. Gosto, entretanto, de sempre destacar que não é algo tão fácil de se solucionar, da perspectiva do bem-estar animal, pois, ainda que se combata o criminoso, hoje de forma mais rigorosa graças as alterações na legislação federal, temos a problemática da destinação do animal que fora vítima. Porém, esse e um outro ponto que estamos em diálogo com o município para que seja resolvido. Nos cumpre aqui, como Comissão, dar a assistência necessária e fazer com que a lei seja cumprida, e assim o fazemos. Estamos, e sempre estaremos, atentos para tais situações, inclusive cobrando providências da Gerência de Bem-estar Animal, da prefeitura, da Polícia, ou de quem quer que seja. Mas, nos cumpre também orientar o cidadão sobre as denúncias infundadas que nos fazem perder o tempo que poderíamos estar despendendo com casos reais e também sobre a responsabilidade de cada um dentro dessa dinâmica. As pessoas podem e devem encaminhar a demanda para as autoridades competentes e fiscalizarem a tomada e providências.
Este tema, do bem-estar animal, ainda é um tabu social na região?
Gostaria de chamar a atenção das pessoas para conscientização sobre a importância do assunto, sobre a desobjetificação dos animais e a responsabilidade de todos, como sociedade, para mudar uma realidade tão cruel. Terceirizar responsabilidade não muda o cenário, as ONGs estão abarrotadas, o município está com superlotação e as pessoas seguem comprando e abandonando animais de estimação. Primeiramente: não comprem, adotem! Se não puder adotar, divulguem e incentivem adoção – inclusive existem animais disponíveis para adoção junto a Gerência de Bem-estar Animal. Segundo: não fechem os olhos para situações desconformes. Denunciem os maus-tratos, sejam gentis com animais em situação de abandono, eles não escolheram estar lá, e doem ração – se não conhecerem nenhuma ONG podem nos contactar que receberemos a doação e destinaremos às mesmas. No mais, convido os amigos advogados e advogadas a se juntarem a Comissão. Todo apoio é bem-vindo.