Apesar da garantia constitucional da liberdade de crença e do Estado laico, o Brasil enfrenta uma escalada alarmante de intolerância religiosa, especialmente contra religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda.
A intolerância contra esses cultos não é apenas expressão de fanatismo ou desconhecimento: é racismo religioso, um reflexo direto do racismo estrutural que marca a história do país. O fenômeno não é novo, mas vem ganhando contornos cada vez mais alarmantes, exigindo atenção dos três poderes e da sociedade civil.
De acordo com dados oficiais do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa em 2024, um aumento de mais de 80% em relação a 2023. Já o número de denúncias ao Disque 100 chegou a 2.472 em 2024, representando um aumento de quase 67% em relação ao ano anterior. As religiões mais atingidas continuam sendo a Umbanda e o Candomblé, mas há também registros envolvendo praticantes do islamismo, judaísmo, catolicismo, espiritismo e protestantismo.
As agressões não se restringem ao ambiente simbólico. São inúmeros os relatos de invasões a terreiros, agressões físicas, perseguições e humilhações públicas. Em Dias D’Ávila – BA, na região metropolitana de Salvador, por exemplo, um terreiro sofreu dez invasões violentas em um único ano, sem que houvesse resposta adequada das autoridades.
Esses dados confirmam que o alvo principal da intolerância são as religiões afro-brasileiras. Isso se explica não apenas por questões religiosas, mas por um componente étnico-racial que as vincula diretamente à herança africana, sistematicamente marginalizada desde o período colonial.
É nesse contexto que se insere o racismo religioso, conceito jurídico e sociológico que vem ganhando força. O termo expressa a confluência entre discriminação religiosa e racial, uma vez que os ataques contra religiões afro- brasileiras atingem diretamente a cultura, a ancestralidade e a identidade do povo negro no Brasil.
A jurisprudência tem avançado nesse reconhecimento. No âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, uma decisão emblemática condenou um homem por invadir um terreiro de Candomblé proferindo ofensas como: “… religião do demônio, eu sou da congregação e vocês são o satanás, vou acabar com todos vocês ai…”.
O TJSP foi taxativo ao reconhecer o caso como racismo religioso, configurando ofensa ao bem jurídico constitucional da liberdade de crença, e uma manifestação clara de racismo estrutural (Apelação Criminal nº 1500257- 85.2021.8.26.0366).
Nos termos do acórdão: “Inadmissível que ainda persistam ofensas verbais, seja pela cor da pele, seja pela religião de matriz africana aos frequentadores de determinada religião, que tanto contribuíram para a construção de muito do que há de mais digno e honroso que se realizou na trajetória cultural de nosso país.”
O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo caracterizou de forma inequívoca a conduta como racismo religioso, destacando tratar-se de “um dos braços do racismo estrutural, vilipendiando a complexa engrenagem política, econômica e social do mundo coletivo que compartilhamos.”.
Em outra importante decisão, agora da Justiça do Trabalho do Estado do Espírito Santo, reconheceu-se o dano moral sofrido por uma trabalhadora chamada de “macumbeira” e acusada de fazer “trabalhos espirituais” (Recurso Ordinário nº 0000676-53.2022.5.17.0009).
O acórdão fez referência direta à Constituição Federal, ao Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), ao Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (Lei nº 11.635/2007), à Lei nº 14.519/2023 instituiu o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé (21 de março), e à Lei 14.532/2023, que equipara injúria racial ao crime de racismo.
A corte capixaba pontuou que as perseguições às religiões de matriz africana não são isoladas, mas sim o reflexo de um sistema de opressão que remonta ao Brasil escravocrata, pois o discurso colonizador se encarregou de demonizar todo tipo de fé oriunda de África. Assim, as religiões de matriz africana foram forçadas, no Brasil, à clandestinidade, como forma de permanecerem vivas ao longo dos séculos de escravidão. Esse preconceito, contudo, prolongou-se no tempo e ainda se manifesta nos dias atuais.
Nesse diapasão, não é dado ao Poder Judiciário se manter inerte diante de situações em que a dignidade da pessoa humana é frontalmente violada em razão de sua crença religiosa, sobretudo quando tais agressões ocorrem no ambiente laboral.
Em um Estado Democrático de Direito, fundado nos princípios da laicidade e do pluralismo, incumbe à Justiça exercer papel decisivo na tutela das liberdades fundamentais, assegurando o respeito à diversidade de fé e o enfrentamento sistemático aos discursos de ódio que perpetuam desigualdades. A proteção às tradições religiosas de matriz africana, nesse contexto, não é apenas dever legal, mas um imperativo constitucional e civilizatório.
De igual modo, é preciso compreender que não se trata apenas de fé: as religiões afro-brasileiras são espaços de resistência, identidade e reconstrução da dignidade de um povo historicamente oprimido. A sua criminalização simbólica, social ou institucional, é também uma forma de apagamento cultural e exclusão social.
Não obstante, o enfrentamento desse problema exige mais do que repressão penal. É necessário ampliar a educação antirracista nas escolas, promover a formação em diversidade cultural no sistema de justiça, e garantir reparação efetiva às vítimas. O silêncio institucional ou a omissão diante desses crimes apenas reforça o ciclo de exclusão e violência.
A advocacia antirracista tem papel essencial nesse enfrentamento. A atuação das Comissões de Igualdade Racial da OAB, como a de Cachoeiro de Itapemirim, deve ser firme na denúncia, educação jurídica continuada, promoção de ações afirmativas e na formulação de políticas públicas. É preciso estimular o uso dos mecanismos legais já existentes, mas também fomentar mudanças institucionais que garantam o acesso à Justiça pelas vítimas e a punição efetiva dos agressores.
A liberdade de crença não será plena enquanto terreiros seguirem sendo atacados, símbolos sagrados forem destruídos e pessoas negras forem silenciadas por praticarem sua fé. O racismo religioso não é apenas uma afronta jurídica, é uma ferida aberta na democracia brasileira.